Wednesday, April 19, 2017

Carta de D. Afonso V a Gomes Eanes de Zurara

D. Afonso V
Gomes Eanes, eu vos envio muito saudar. Vi huma carta que me enviastes por Antonio Fernandez, com que muito folguey, por saber que ereis em boa despozição da saude, porque certo tanto tempo avia que vos la ereis, e eu não via carta vossa, que avia por muito certo que de algüa infermidade ereis ocupado, porque não podieis escrever: e d'esto dou por testemunho ao Rº P. Bº de Lamego, com que eu muitas vezes falava, que causa seria porque vos não me escrevieis, que por muy sem duvida tinha que não seria por minguoa de vontade e lembrança vosa; e muito me prouve de saber como vos o conde apozentara, e ho guasalhado que d'ele recebestes: e posto que ho elle deve assi fazer por usar de sua verdade, eu lh'o agradeço muito, e vos asi lh'o dizei de minha parte. Não he sem rezão, que os homens que tem voso carguo sejam de prazer e honrar, que depois d'aqueles principes ou capitaëns que fazem os feitos dignos de memoria, aquelles que depois de seus dias os escreverão muito louvor merecem; bem aventurado, dizia Alexandre, que era Achiles, porque tivera a Homero por seu escritor. Que fora dos feitos de Roma se Tito Livio(1) os não escrevera? E Quinto Curcio(2) os feitos de Alexandre, Homero os de Troya, Lucano os de Cesar? E assi outros autores. Muitas cousas estes fizerão, as quais não sam tão dignas de memoria quanto sam doces de ouvir e leer, pello bom estilo com que forão escritas. Lê-se no primeiro de Tito Livio (como vos melhor sabeis) que se não fora a oração que fez hum nobre barão d'aquele tempo, quasi todo o povo de Roma fora perdido. Muitos são os que se dão aos exerçiçios das armas e muy poucos ao estudo da arte oratoria. Asi que pois vos sois nesta arte asas ensinado, e a natureza vos deu muy grão parte d'ella, com muita razão eu e principes de meus reynos e capitaens devem d'aver a merçe que vos seja feita por bem empregada. Muitos certo vos são obrigados, porque, ainda que os feitos de Cepta sejam asas de rezentes(4), depois que eu vi a caronica que vos d' ellos escrevestes, a muitos fis honra e merçe com melhor vontade, por ser certo de algüns boõs feitos que laa fiserão por serviço de Deus e dos reys meus antecessores, e meu, e a outros por serem filhos, d'aquelles que agi laa bem servirão, do que eu não hera antes em tam comprido conheçimento, e creo que não menos serão aos que depois de my vierem, quando virem o que haveis de escrever dos feitos de Alcaçar. E, se alguns merecem gloria, por irem a essa terra, por servirem a Deos e a mi, e fezerem de suas honras, vos assas sois de louvar, que, cõ desejo de escrever a verdade(5) do que eles fizerão, vos desposestes a levar o trabalho que eles soportarão; vos podereis laa ser bem aguasalhado do conde; mas, se o dezejo que tendes de me servir e fazer o que vosso serviço pertençe vos laa fizesse viver contente, certo he que não pode Alcaçar dar ho que Lixboa tem; aquela vida fostes vos buscar por usares de vertude que aos outros em lugar de pena dão por desterro; asi que quanto eu isto melhor conheço, tanto vos mais tenho em serviço de ho fazerdes. E não quero que esteis laa mais que quanto sentirdes que he compridoiro pera o que tendes de escrever, e a vos aprouver.

Do que dizeis do cõmendador Alvaro de Faria, eu estimo seu serviço como he razam e assi espero de lhe fazer merce. Quanto ao que dizeis da mingua de mantimento, faz-se nisso por minha parte tudo o que se pode fazer, mas duas cousas se requerem para os que estão em Alcaçar serem bem providos, a hüa estar laamilho em almazem pera socorro de quando, pello tempo ou por outra necesidade, tão asinha não vay o pam, e a outra que o conde, ou qualquer outro capitão que laa estiver, faça saber aos quarteis do anno a gente que laa estaa, pera homem conçertar a despesa com a reçepta. Todo o bem que me dizeis do conde eu creo que ha nelle, e certo cuidado que nõ he menor peno que eu d'ello conheço. Tenho-vos em serviço de quererdes saber novas de minha desposição, e graças a Deus eu me acho bom, asi do corpo como das outras cousas. Empero home anda no mar d'este mundo, onde he continuamente combatido das ondas d' elle em especial pois todos andamos naquella taboa depois do primeiro naufragio, asi que ninguem se pode segurar ate que não chegue aquelle verdadeiro porto seguro que home não pode ver senão depois da sua vida, ao qual a Deos praza de nos levar quando yir que he tempo, porque elle he marinheiro e piloto sem o qual algü home não pode entrar. Do bispo nosso amiguo sabereis que ho vejo ledo e são e de boa desposição, e praza a Deus de lhe encaminhar as cousas segundo elle deseja, se forem de seu serviço. Da Torre dos pergaminhos eu tirarei aquella lembrança que vir que he meu serviço. O meu vulto pintado eu o não tenho pera vo-lo aguora laa poder enviar, mas o proprio prazera a Deus que vereis laa em algü tëpo, cõ que vos laa mais deve prazer. A vossa irmãa averey em minha encomenda, segundo me escreveis.
Escrita a XXJ de Novembro.

Ap. J. Soares da Silva, Memorias para a Vida del-rei D. João I, IV, 1-4.

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(1) Tito Lívio: historiador latino (59 a.C. - 17 d. C.), autor de uma história de Roma.
(2) Quinto Curcio: historiador latino, autor de uma biografia de Alexandre Magno.
(3) Lucano: Marco Aneu Lucano, poeta romano (39-65 d.C.), autor do poema épico Farsália.
(4) Rezentes: do latim recentes, de recens, recente) recentes.

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